segunda-feira, 12 de setembro de 2011

PORTO DE ENCONTRO


Cai a noite em mansos goles
De licor de sol já posto,
E no prazer de beber-te,
Douro que guardo nos olhos,
Desce-me ao peito a saudade
Da terra que em ti arrastas
Por nomeação e destino.

Ouro ao sol em foz sem molhes
És beijo que tinjo a gosto,
E na vazão de cantar-te,
Rio que trazes meus solos
Na tua impetuosidade,
Sinto a emoção que me basta
Para os poemas que assino.

Porto é cálice de encontro
Muito mais que de partida,
Se nos brinda ao reencontro
Com um amor de toda a vida...

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

RIO


No fundo
ainda me esperas
meu de sempre
para me mergulhares

os olhos líquidos
nos reflexos das terras
em declives de sol alto.


Em fluência apaixonada
me encantas
imortal vate
e me unges tua
ninfa...

meu amor
rio

terça-feira, 12 de abril de 2011




ADO(U)RAÇÃO

Descer-te, Douro Alto, até às margens
Do rio que te curva a adoração,
É ascender ao estado de fusão
De ser néctar e xistos, sem clivagens.

Subir-vos, Douro-e-montes, é sufrágio,
Que cumpro, calço a calço, em devoção,
Não encontrando nisso dor senão
A demora do necessário estágio

Do vinho que te bebo em ponto nobre
E me eleva ao sacro azul que te cobre.

Medito-te então, Douro, em alva ermida,
Quieta e contemplativa oração,
Como quem agradece as cores do verão
Na certeza da vindima pressentida.

quinta-feira, 10 de março de 2011



RÉGUA QUE ME MEDES SAUDADES


Recebes-me no cais e aberto amplexo
Onde o meu coração ancora à justa,
E se deixar-te em breve já me custa,
Consola-me o perdão do teu reflexo

Em cores que o rio dilui em brilhos,
Apagando uma sombra de saudade
Que perpassa os meus olhos sem vaidade
De ser a mais pródiga dos teus filhos...

Mas maduro é o amor que nos reune
Para cá das agruras do Marão,
No lar onde 'inda acendo o mesmo lume...

E d'ouro é o cordão que nos enlaça -
Gavinha que me faz do coração
Cacho d'uvas que nunca chega a passa.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

(foto de Miguel Figueiredo em olhares.com)


A LENDA DOS TRÊS RIOS


Nos tempos da criação, três grandes rios brotaram vigorosos, lá para os lados de Espanha. Ainda sem bem se saberem orientar, o instinto guiou-os para oeste, na busca do Grande Mar, onde se reuniriam às águas que haveriam de cobrir (e descobrir) o planeta em inquietas epopeias.
Já a meio da viagem, cansados e enlameados, decidiram que pernoitariam juntos, tencionando prosseguir viagem aos primeiros alvores do amanhecer.

Douro, Tejo e Guadiana, eram esses os seus nomes, deitaram-se tarde nessa noite. Reunidos à volta dos seus sonhos de alcançar o Grande Mar, ficaram em amigável cavaqueira até as suas águas repousarem as lamas no fundo, e o sono os vencer. E, entre outras conversas de jovens aventureiros, fizeram uma aposta: quem primeiro chegasse ao mar, seria o rio vencedor...

O Tejo, o mais robusto dos três, não queria sequer considerar a sua derrota. Fingiu adormecer, mas mal sentiu os outros dois respirar pausadamente, num sono solto e profundo, deitou-se ao caminho. Escolheu o caminho mais fácil, entre planícies a perder de vista e criou lezírias maravilhosas. Acusando o cansaço, espreguiçava-se, indolente, e foi perdendo a pressa, convencido do seu certo avanço. Relaxou tanto, que se dava ao luxo de dormitar sonecas aqui e ali, ou ficar embevecido a admirar a paisagem que atravessava a azul, como um pincel de pintor exímio...

Guadiana, que tentara manter-se semi-alerta na intenção de ser o primeiro a partir, acordou ainda o sol não tinha nascido. Não viu o Tejo e alarmou-se: agora teria que esforçar-se em dobro, correr, cortar caminho, mas, ah, ainda iria vencer!, pensou, determinado.
E se assim o pensou, melhor ainda o fez: resolveu rumar a sul, determinar fronteiras, fluir cauteloso mas firme, de encontro aos braços do mar aberto. Sem quase se deter para admirar as terras que percorria, seguia, diligente, na esperança da chegada em estuário de festejos...

O Douro, o mais jovem e estouvado dos três, deixou-se dormir!...
Quando acordou, já o sol ia alto, precipitou-se na corrida, alarmado e ressentido com os seus parceiros de jornada.
Quase enfurecido, escolheu o que lhe pareceu o caminho mais rápido, ainda que acidentado e sinuoso: ficou-se pelo norte, mesmo ali, e rompeu escarpas, galgou ravinas, rasgou ventres pedregosos. Sem sequer se deter a ver por onde ia, cortou a torto e a direito, em contornos caprichosos...

Chegou ao mesmo tempo que o sol, ao ocidente prometido. O Grande Mar recebeu-o de braços abertos e o Sol dourou a apoteose da sua vitória em tons inesquecíveis.

Tejo e Guadiana, no limiar da foz que escolheram, só perceberam a derrota, quando o grito de vitória do jovem Douro ecoou nos ares do entardecer. E o Mar, tingido a ouro, estremeceu, transbordando de emoção...

domingo, 23 de janeiro de 2011


(a vista da minha colina - foto da autora)

AUTO-(GEO)BIOGRAFIA


Sou duma colina de nascer serôdio, quase no limite da legitimidade - filha assumida de um amor nunca negado entre o maduro Douro e a sua Beira... Colina altiva, a colina onde nasci, impôs sempre a sua orientação para o rio que a baptizou, mas só em bicos de pés o conseguia ver passar, envalado ciosamente pelas suas irmãs mais próximas. Mas sabia-o lá ao fundo, embalado docemente em berço de veludo e afectos.

A colina onde nasci era feliz. E forte. Sempre olhou o Marão de frente, sem medo ao norte, guardada pela luz terna que lhe nascia sobre os umbrais distintos; iluminada pelos grandiosos entardeceres que se fundiam em ouro e sangue, além, muito além, ao largo das vagas meigas das Meadas.
Lamego sempre a acompanhou, a oeste dum relancear. Separou-as só o Varosa, enterrado a fundo, no relevo e no coração. Em menina, o Varosa tinha para a minha colina a mesma visibilidade que o Douro: quase só sensitiva; mas, o progresso ditou destinos energéticos às suas águas humildes e a albufeira formada, em fases enchentes, molha-lhe agora os pés, e o pedaço de espelho líquido regala-lhe os olhos, em reminiscências de céu.

Mas apesar da colina onde nasci ser sempre minha, eu não pude ser sempre da colina onde nasci. Cresci, e a minha primeira intenção foi de voar, com as asas novinhas que um vento içante me ofereceu. Voei para longe, conheci parte do mundo e julguei vê-lo todo. Vi pessoas diferentes e pensei conhecê-las todas. Julguei-me acima do azul e então desci, para conhecer outras cores.
Fui parar ao abrigo da minha velha colina. Mas a pressa de viver empurrou-me encosta abaixo e resvalei, magoando-me, para um vale de lágrimas. Caí e ergui-me muitas vezes, para descobrir que o mundo é mais que cores, que ilusões, que vontades, que escolhas feitas em entardecedes de ouro. Mais até que amor: é renúncia, sobrevivência, luta, sofrimento, Dor.

E, seguindo o meu curso, encontrei o curso do meu Douro. A minha colina ficou para trás, mas a Régua que me mediu os anos, deu-me a margem mais favorável, virada a sul, donde lhe podia ver o topo protector...
... que me não pode poupar às lagrimas mais que chorei e juntei ao rio que nos separava, em inquieta fluidez.

Tanta água corre debaixo de uma ponte, que a acabará por minar. E os invernos rigorosos arrastaram-me para jusante, deixando para trás a minha colina, a minha colcha de vinhas, o meu bragal amealhado.

Desci com o Douro, na promessa duma foz libertadora. Agora, no limiar do mar que em ânsias me cobiça o partir, detenho-me, na fruição dos últimos entardeceres.
Não tenho pressa. Espraio o meu delta numa paz merecida, até que o mar me traga o barco que me levará. Para montante, Douro acima, de regresso à colina que me viu nascer...